Histórias de Moradores da Granja Viana

Esta página em parceria com o Museu da Pessoa é dedicada a compartilhar o acervo de vídeos e histórias com depoimentos dos moradores.

História da Moradora: Tula Pilar Ferreira
Local: Cotia
Ano: 22/06/2015



 



Vídeo: Uma mineira boa de verso e de prosa


Sinopse:

Em seu depoimento, Tula Pilar Ferreira conta que passou sua infância entre travessuras e brincadeira e como conheceu a literatura. Ela fala sobre seus trabalhos como doméstica e passadeira, as cidades onde morou e sobre a criação de seus filhos. Fala do preconceito por ser pobre, negra e favelada. Descreve como começou a escrever poesia e como conheceu os saraus da cidade de São Paulo, levando sempre junto a sua filha mais velha, Samanta. Conta sobre seu trabalho na revista Ocas, como foi a produção de seu livro e sobre seu sarau: Cadin de Coisa.

História:

Meu nome é Tula Pilar Ferreira. Nasci em Leopoldina, Minas Gerais. Meu pai chamava José Ferreira, eu nunca conheci meu pai. Eu sei que ele trabalhava de lavrador, é isso, na roça. E a minha mãe, Antônia de Souza Ferreira, era cozinheira desde os sete anos de idade, ela era uma senhora cozinheira, e lá em Minas. Eu comecei a ir trabalhar com ela nos idos dos meus sete anos, ajudar ela na cozinha. Eu fui pra Belo Horizonte com dois anos de idade. Os primeiros livros que eu li foi nessa casa que eu trabalhei, dos dez anos até os 14 anos, tinha a biblioteca da mulher. E era uma sala enorme, tinha aquela estante enorme cheia de livros. Ali eu aprendi inglês, porque eu tinha uns livrinhos de inglês que eram muito legais, eu ficava lendo e via as imagens. Ali eu li todos os negócios do Monteiro Lobato.

Fui morar em Ribeirão das Neves. Engravidei. Foi uma paulada na cabeça, uma pancada feia, eu tinha 15 pra 16. E a minha mãe: “Ahh meu Deus, mas agora? Você vai abrir a porta pra todas, vai encher a casa de criançada, não sei o quê”, aquela coisa. Ah, minha nossa senhora, foi aquela loucura! Foi uma doideira, eu lembro que um pai de santo lá, que nós ia no centro dele, ele que contou pra minha mãe porque eu não tinha coragem. Ele que desconfiou e contou pra minha mãe porque eu não tinha coragem. E ao mesmo tempo que ele contou ele aconselhou pra minha mãe não fazer nada comigo, não sei o quê. Naquele tempo batia, espancava gente. Minha mãe: “Não, não vou fazer nada, não”.

Aí nasceu a Samanta. Na época eu tive apoio da minha mãe, da minha tia. Minha mãe chamou o pai dela para uma conversa, ele não foi, se borrou todo e não foi. Minha mãe falou: “Ele não gosta de você, não te respeita, então não vou obrigar você a casar com ele. Nós vamos te ajudar, vamos cuidar de você e dessa criança que está vindo, uma criança segurando outra criança, mas você não vai me arrumar mais barriga, pelo amor Deus, hein menina? Tula Pilar!”, que quando ela ficava brava falava: “Tula Pilar!”, e quando ela falava Tula Pilar eu gelava, porque eu sabia que o couro ia comer. E eu apanhava muito porque eu era muito danada. Minha mãe que criava a minha filha. Ela chamava a minha mãe de mãe, ela não me chamava de mãe, ela me chamava de Tula, junto com as minhas irmãs. Ela via minhas irmãs me chamar de Tula.

Nisso eu já era diarista, eu já não era mais de ficar na casa dormindo, porque eu queria dormir em casa pra cuidar da minha filha. De noite eu cuidava dela, chegava, tomava banho, arrumava o cabelinho dela. Muitas vezes a minha tia trançava, muitas vezes a minha tia tinha os afazeres da casa, não dava e eu mesma trançava. E eu já era diarista, trabalhava como diarista. E como era boa de serviço, como diz o povo, era uma disputa de patroas me querendo, eu tinha muitas patroas porque eu era boa de limpeza, mas eu era lerda porque eu ficava lendo as coisas.

Quando eu estava com uns 19 anos eu vim pra cá, mais ou menos, 18, 19. Primeiro eu fui pro Rio de Janeiro, trabalhei como babá lá um ano, quando a Samanta tinha uns quatro anos porque eu olhava uma menininha no Rio e tinha essa conexão com a Samanta, eu falava: “Vou deixar minha filha pra olhar a filha dos outros”, mas era a nossa condição, depois eu vim pra cá. Eu vim sozinha, como arrumadeira. Eu lembro que a mulher falando assim, ela olhando pra mim: “Não, eu tenho uma aqui que é a cara da senhora, a senhora vai adorar! Arrumadeira boa. Experiente, sim. E uma carinha boa, mineira. Ah, mineira”, a mulher pedindo pelo amor de Deus não mandar baiana pra ela. Mas chegou lá, eu descobri por quê. Ela já tinha uma cozinheira baiana e a velhinha era osso duro de doer, a cozinheira dela.

Já estava lá há muitos anos. Eu fiz amizade com essa senhora e ela falava: “Nossa, mas a minha cozinheira está rindo”. Essa mulher ficou apaixonada por mim porque eu fazia os outros rirem. E ela viajava e deixava a casa na minha mão, assumia, como se fosse uma governanta, até ela voltar dos States lá. E a homarada ficava me assediando, mas eu: “Não, aqui é o nosso local de trabalho”, eu sempre ali, firme. Porque eu sou uma pessoa muito correta. Era no bairro do Morumbi. Jardim Guedala. Lá tinha aquele livro lindo da série lá, A Cor Púrpura! Li A Cor Púrpura, li o Negras Raízes. Fiquei: “Ai meu Deus, por que eu li esse livro? Por que eu li?”. Eu não queria terminar de ler, só que eu falei: “Não, tenho que terminar de ler pra ver o que acontece com o Kunta Kinte”. E chorava, chorava, chorava. E lembrava do meu povo lá em Minas e chorava, chorava. Mas eu li. E eu tive contato com essas literaturas mais clássicas.

Como a minha mãe veio, a gente alugou uma casinha lá nos cafundós do Macedônia, Casa Branca, aqueles cantos lá. E depois a minha mãe vai embora e eu alugo um quartinho pra mim sozinha porque eu fiquei muitos anos nesse quartinho sozinha. Num corticinho perto de onde eu já estou, em Taboão da Serra. Porque eu vim andando por dentro, ‘ah, tem um quartinho ali assim, assim e assado’. Fui andando por dentro, Jardim Roberto, tal. Sei que eu vim pelo Marabá, cheguei aí onde eu estou até hoje, nesse pedacinho que eu moro, Maria Rosa, Parque Albina, que era tudo meio mato, hoje tem shopping, tem um monte de coisa. A minha filha veio bem depois para cá, quando eu engravidei do Pedro Lucas que é o meu filho de 18 anos.

Trabalhei também bastante tempo como passadeira. E nessa coisa da falta de um emprego, porque daí também eu brigo com essa patroa que eu sou babá e saio fora. E nessa casa, já é Granja Viana, já é um outro lugar, eu conheço uma senhorinha, dona Iria, minha amigona, porque eu sempre ficava amiga da cozinheira, aquele link com a minha mãe, sei lá.

Em várias mansões que eu trabalhei eu era muito amiga da cozinheira. E com essa dona Iria ela falava: “Mas você está certa, você tem que estudar mesmo, tem que fazer coisas mesmo”. E eu começo a fazer cursos aqui, cursos ali, de vez em quando eu acho certificado em casa. Fiz muito curso desse negócio de informática, fiz curso pra negócio de vendedora. Toda quarta-feira subia, era dia de quarta que eles se reuniam. E eu pegava o ônibus, que é embaixo no Campo Limpo, até hoje a gente pega, eu moro lá em cima no Taboão, a gente pega ônibus aqui no Campo Limpo. O que acontece? Passava e eu via assim um povo reunido no microfone, eu falava: “Meu, o que esse povo fica fazendo aí”. E eu me achegava meio tímida. “Mas que bacana isso”. Um dia eu entrei. Entrei, pedi uma cerveja e fiquei, uma mulher estava falando. Eu pensei que a mulher era professora e estava falando pras pessoas. Eu: “Nossa, que bonito uma professora falando no microfone”, no meu entendimento era isso.

Falei: “Nossa, que lindo, um dia eu queria ir nesse microfone”. Depois foi uma outra pessoa, um homem, falou. Eu falei: “Nossa, pode ir no microfone, um dia eu queria ir nesse microfone”. E fiquei com aquilo na minha cabeça. Mas a poesia era assim, o bar era dividido, aqui era tipo uma salinha, ficava o sarau, e no outro lado ficava o boteco, pra ninguém ficar conversando, não sei o quê. E eu ficava na portinha aqui do boteco olhando aquele movimento. E um dia eu passei lá pra dentro e sentei quietinha, mas ninguém me percebe. Eu estou sozinha e falo: “Samanta, tem um barzinho ali embaixo, vamos lá, quarta-feira que vem eu vou te levar, você vai gostar. O povo vai lá no microfone” “Como assim, mãe? O que é isso, você é louca?” “Não, Samanta, é legal, vamos lá, quem sabe a gente canta uma música, qualquer coisa, vamos lá pra você ver como é que é. E vamos tomar uma cervejinha. Eu pago um refrigerante pra você, eu tomo uma cerveja”, a gente dura, com aquele dinheirinho contadinho.

E nisso eu já tenho o Pedro, o Pedro está grandinho. “A gente deixa o Pedro dormindo e vamos lá. A gente vai, eu sei que ele não acorda”. Porque o Pedro dormia, tanto é que uma época eu volto a ser doméstica e ele dorme o dia inteiro, eu faço o serviço, pego ele bonitinho, troca a fraldinha e vamos embora pra casa. Ele dormia o dia inteiro. Então a gente sabia que o Pedro ia dormir. As loucas, deixa o menino no berço e vamos. Fomos pro bar. Nisso, numa terceira vez o Pezão vê a gente. Não, ele sempre viu a gente. “Nossa, duas moças bonitas, duas irmãs, que bacana”.

Eu falei: “Não, a gente não é irmã” “Não? O que vocês são? Primas?” “Não, filho, eu sou a mãe dela” “Como assim?” “Eu sou a mãe dela, Samanta, tal”. Já rola aquela amizade e tal e começa. Ele fala: “Você sabe escrever?”, eu falei: “Sei escrever, adoro escrever!”, ele falou: “Então, menina, escreve!” aquele jeito dele de falar. “Traz uma poesia pra gente na semana que vem. Volta na semana que vem e traz uma poesia. Você também!”, falou com a Samanta. “Gosta de escrever, Samanta?” “Eu gosto” “Então traz aí. Você está estudando?” “Estou, estou na escola” “Traz uma poesia pra gente”. A Samanta escreveu um rap e eu escrevi uma poesia que eu falo como eu vim pra São Paulo. E nesse ínterim, eu crio a Poesia da Cachaça, que é famosa, que me fez ficar famosa essa poesia.

Eu estava de doméstica ainda, nessa casa do Jardim Guedala, eu ia pro curso, quando eu pegava o ônibus pra passar ali da Eusébio Matoso, ele passava, saindo de onde chama Paineira, ali na Paineira tinha um poste, tinha uma poesia. Eu lembro que eu lia toda vez que eu passava, eu lia. Da Paineira, ele passa em vários pontos de Pinheiros da Teodoro Sampaio tinha. Então, lembra de um ônibus de dois andares que tinha antigamente? Parava bem em cima da poesia. Aí eu conheço o Binho em um barzinho que ele começou a fazer a poesia dele lá no Campo Limpo, com as velinhas em cima da mesa, tal. Ali também eu levo a poesia erótica, eu fico famosa com as formas feminis, que é bem indecente. E no Samba da Vela a gente era muito aplaudida, a primeira vez que eu fui com essa poesia da cachaça, nossa. Os aplausos, eu falo: “Gente, o aplauso pra mim é a paga do meu trabalho”, porque é muito gostoso, aquele enxame, parece enxame de abelha, vocês já viram a coisa da abelha? Aquele barulho. O aplauso pra mim tem aquele som assim, eu acho muito rico. E eu comecei a gostar mais e a produzir mais, eu falei: “Quer saber? Cada semana eu vou escrever um texto”. Eu começo a criar vários textos, começo a partir pra essa coisa do erotismo, porque como todo mundo gosta e adota esse sensual eu começo a falar.

Nisso eu começo a vender Revista Ocas por quê? Eu já não sou mais passadeira porque eu já briguei com os patrões, tudo. A Revista Ocas é esse projeto que tem esse dinheiro que é uma oportunidade de trabalho vender a revista. Ela não é emprego porque não tem vínculo empregatício, mas ela tem essa relação da geração de renda. E nisso, como eu estava na rua um dia que eu fui procurar um trabalho, sento no Masp e começo a chorar porque eu fui recusada na vaga como passadeira. Vejo um cara com um papelzinho, um coletinho. Eu falei: “Panfleto, é isso que eu vou fazer, distribuir panfleto. Deve dar um dinheirinho”. Eu vou conversar e ele: “Não, menina, isso aqui não é panfleto, isso aqui é Revista Ocas. Projeto social, internacional, tem em mais de 50 países. Pra quem está em situação de rua vender a revista”. Só que ainda demoro uns 15 dias, volto lá: “Ô moço, não sei onde que é o Brás, não sei onde é esse lugar” “Vou lá com você, menina”.

Ele me leva. Nisso a Kênia, a moça que me atende, fala: “Não, a gente vai pesquisar a sua situação então”. Passa na psicóloga, Maria Alice, já me manda, vou lá com a Maria Alice Vassimon, que é uma pessoa magnífica do projeto Getep, terapia ocupacional, essas coisas. E nisso a Ocas publica um texto meu. Porque na oficina de texto que rolava eu mostro que eu sou poeta. Ali começa a aparecer. “Nossa, mas a Pilar tem uma facilidade pra escrever as matérias”, porque aí os jornalistas do projeto sentam com a gente, criam texto, criam matéria, a gente fez matéria com o Seu Jorge, fizemos Rita Cadillac, matéria de capa. E lembro que eu fico grávida da Dandara, mas eu estou na EJA, já estou estudando. A gente fez um livrinho artesanal, a Samanta desenha e eu escrevo e tem os textos dela também. Eu falo: “Esse texto seu faz um desenho assim”. E ela desenhava muito bem, Samanta é inteligentíssima, boa de tudo, de conta, de desenho. Tem 11 anos que eu estou na Ocas. Porque a gente já está famosa, as duas bonitas, eu e a Samanta. A Samanta já está cantando, ela já está cantando com os meninos, um grupo que eles tinham, que era o Jairo, o Kênia.

Em 2004 a gente criou o Vai Quem Quer. Eu e a Samanta, lá em Taboão, Vai Quem Quer. Eu retorno com esses saraus um tempo depois. Mas eu organizo coisa na minha casa, festa na minha casa, eu organizo uma coisinha aqui, uma coisinha ali e sempre participando com o pessoal. Faço, ali na Casa Amarela de Santo Amaro, Espaço Cultural Júlio Guerra, eu faço um evento lá. Eu fiz vários eventos, assim, que acabou me dando um destaque como organizadora, agitadora. O livro Palavras Inacadêmicas era bem simplesinho. Ele é xerox, mas é o que a gente tinha. As meninas me arrumam esse papel, a Professora Débora Galvani, uma época ela arrumava direitinho na gráfica, lá na USP.

Resolvi fazer o Cadim de Coisa com relação com a menina mesmo, menina mineira, a minha mineiridade. E essa comida. Então, quando eu comecei na sala no projeto que eu estudava, Trecho 2.8, fotografia, pesquisa, pra pessoa em situação de vulnerabilidade social. E nessa sala a professora deu a oportunidade de fazer o Cadim de Coisa lá. A professora Grácia do projeto ajudou a bolar o Cadim de Coisa e mais essas meninas da T.O., da USP, também. Elas sempre elaboraram junto comigo. Foram várias palavras que a gente fala em “mineirês”.

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